Por Andréia Arantes, especialista com mais de 20 anos de vivência no varejo.
Lembro-me com clareza do balcão de madeira da loja do Seu Antunes, onde comecei minha jornada. Havia um cheiro de café moído no ar, e o sino na porta anunciava cada cliente como um convidado. Seu Antunes estava sempre lá. Seu olhar não era de um vigia, mas de um jardineiro que conhecia cada canto do seu jardim. Naquela época, uma frase era lei: “O olho do dono é que engorda o porco”. E o negócio dele prosperava com a força de sua presença e de seu cuidado.
Por anos, guardei essa imagem como um ideal. Até o dia em que, no auge da minha carreira, me vi do outro lado do espelho. Eu me tornei a personificação de como o “olho do líder”, quando distorcido pela pressão, adoece a si e a todos ao redor.
A Confissão do Olhar Viciado.
Fui essa líder. Como supervisora de telecomunicações em uma gigante multinacional, descobri que meu “olho” não pertencia mais a mim nem à minha equipe. Ele estava acorrentado à tela de um celular. A cada 20 minutos, eu era obrigada a atualizar um ranking de vendas que transformava o esforço humano em uma espécie de bolsa de valores, numa competição frenética e desumana.
Minha rotina era um borrão de 24 horas. Havia promotores abrindo lojas às 6h da manhã e outros fechando vendas às 23h. Perto da meia-noite, eu ainda estava imersa em relatórios, para, às 6h do dia seguinte, já estar distribuindo as metas do novo dia. Eu vivia em função de uma planilha, não de pessoas.
O mais cruel era a incoerência. Enquanto o sistema me exigia essa vigilância digital implacável, minha própria gestão me cobrava “presença em campo”. Como eu poderia estar genuinamente presente, conectada, se o meu foco estava sequestrado por um placar online? Eu me tornei uma líder incoerente: ausente mesmo estando no local, cobrando da minha equipe uma energia que eu mesma já não tinha. Eu não estava engordando o porco; eu estava exaurindo o rebanho, começando por mim.
O Diagnóstico de um Sistema
Minha história não era um desvio, mas o resultado esperado de uma cultura de gestão que normalizou o insustentável. Os dados de mercado hoje somente quantificam a epidemia que vivi na pele.
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A Fuga de Talentos: O relatório “Panorama do Mercado de Trabalho 2024” da GUPY aponta para taxas de rotatividade altíssimas no varejo e em serviços. As pessoas não ficam porque ambientes como o que descrevi não são feitos para reter, mas para consumir e expelir.
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Líderes no Limite: Fiz parte da estatística. Pesquisas de consultorias globais como a Korn Ferry e a Deloitte consistentemente mostram que uma parcela significativa da liderança brasileira, por vezes chegando a quatro em cada dez líderes, relata sofrer de burnout. A pressão por resultados imediatos e a sobrecarga digital criam o líder doente, que, inevitavelmente, comanda uma equipe doente.
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A Raiz do Problema: O instituto Gallup, em seu relatório anual “State of the Global Workplace”, é categórico ao afirmar que o gerente direto é o principal fator de engajamento de uma equipe. Quando o olhar do líder está viciado em uma tela, a equipe se sente invisível, e o trabalho perde o sentido.
Curando o Olhar: O Caminho de Volta
A mudança só acontece quando a dor de continuar se torna insuportável. A minha jornada para curar esse olhar começou com a difícil admissão: “Este sistema está me quebrando, e estou levando minha equipe junto”.
Hoje, com a experiência de quem esteve dos dois lados, afirmo com convicção: o olho do líder ainda é o que faz o negócio prosperar. Mas ele precisa de um novo foco, uma nova direção.
É preciso trocar 30 minutos de análise de um ranking de vendas por uma conversa de 10 minutos com um colaborador, perguntando: “Qual é o seu maior desafio hoje e como eu posso, de fato, te ajudar?”
É substituir a cobrança por mensagem de texto pela construção de confiança através da escuta ativa.
É entender que a verdadeira “presença” não é sobre estar fisicamente no mesmo lugar, mas sobre estar humanamente disponível para as pessoas que fazem o resultado acontecer.
A tecnologia deveria nos servir, e não nos escravizar. A lição que levei uma carreira para aprender é que nenhum número brilhando na tela de um celular jamais terá o poder do brilho no olho de um colaborador que se sente visto, ouvido e valorizado.
Esse, sim, é o indicador mais preciso de um negócio verdadeiramente saudável.
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